Dimas Tarcísio Vanin
15/02/2008
O Código Tributário Nacional disciplina nos seus artigos 134 e 135 a questão da responsabilidade tributária de terceiros. No que toca à responsabilidade tributária dos sócios, o tema sempre recebeu atenção da doutrina e a Jurisprudência inclinou-se no sentido de que os sócios não respondem pelos tributos da pessoa jurídica, salvo nos casos expressamente previstos em lei.
Sucede que com a edição da Lei Complementar 123/2006, que instituiu tratamento diferenciado e favorecido à microempresa (ME) e à empresa de pequeno porte (EPP), veio o § 4º do artigo 78, com a seguinte disposição: “Os titulares ou sócios também são solidariamente responsáveis pelos tributos ou contribuições que não tenham sido pagos ou recolhidos, inclusive multa de mora ou de ofício, conforme o caso, e juros de mora.”
Em função desse dispositivo, parece ter reacendido a discussão quanto a responsabilidade tributária dos sócios. Discute-se, agora, qual a abrangência do dispositivo legal retro transcrito: ampla ou restritiva.
A principal dúvida que se estabelece, é saber se esse comando legal tem aplicação restrita aos sócios das ME e das EPP, ou se sua aplicação é ampla, atingindo também os sócios das sociedades não enquadradas nessas duas categorias.
Para alguns autores, referida norma legal tem aplicação ampla, como é o caso do ilustre Anderson Furlan, juiz titular da Vara de Execuções Fiscais da Subseção Judiciária de Maringá (PR), conforme artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário 140, de maio de 2007, nas páginas 7 a 13. O seu principal argumento é de que se há responsabilidade solidária dos sócios de uma ME ou EPP (que são empresas que gozam de tratamento diferenciado e favorecido), com muito mais razão tal responsabilidade tem aplicação também para os sócios das demais sociedades. O argumento é forte e impressiona.
Entendemos, porém, de forma diferente, qual seja, de que a norma contida no parágrafo 4º do artigo 78 da LC 123/06, tem aplicação restrita aos sócios de empresas enquadradas como ME ou EPP, sob os seguintes argumentos.
Primeiro — Leis Complementares 95/98 e 123/06
Em 1998 foi publicada a Lei Complementar 95, dispondo sobre a elaboração e alteração das leis. O seu artigo 7º assim dispõe:
Art. 7º — O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I — excetuadas as codificações, cada lei tratara de um único objeto;
II — a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;
III — o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão especifica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou cientifico da área respectiva;
IV — o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.
Como se depreende das disposições acima, a lei deverá ser elaborada de tal forma que preserve tais comandos, destacando-se o princípio de que a lei não deve conter matéria estranha ao seu escopo e deverá ter expressado o âmbito de sua aplicação.
Pois bem. No caso da LC 123/06, o artigo 1º prevê, de forma expressa, que as suas disposições têm por finalidade instituir tratamento diferenciado e favorecido às ME e às EPP, e somente a elas.
Portanto, a LC 123/06 andou bem, nesse aspecto, observando as diretrizes da LC 95/98 e, de forma clara, consignou seu âmbito de atuação às ME e as EPP, não consignando aplicação a outras sociedades.
Logo, só por esse fato, não vislumbramos espaço para dar interpretação ampla ao dispositivo em questão.
Segundo — Artigos 134 e 135 do CTN e a responsabilidade de terceiros
Como dito no início, a questão da responsabilidade tributária de terceiros já está disciplinada nos artigos acima mencionados. O CTN foi bastante minucioso, a ponto de dispensar à matéria dois artigos, divididos em 10 incisos e um parágrafo.
Se for admitida a aplicação ampla dessa norma legal, então estaria revogada a responsabilidade subsidiária [1] prevista no “caput” do artigo 134, bem como não haveria mais a necessidade de verificar se o ato foi praticado com excesso de poder ou infração de lei ou do estatuto social, para a aplicação da solidariedade, prevista no “caput” do artigo 135, ambos do CTN!
Então nos perguntamos: Será que um simples parágrafo (4º) inserido num artigo (78) da LC 123/06, cujo “caput” nada trata de responsabilidade tributária de terceiros, tem alcance suficiente para disciplinar e revogar a matéria tratada nos artigos 134 e 135 do CTN?
Decididamente, parece que não, ainda que não haja impedimento legal para que tais disposições legais sejam alteradas. Se tivesse sido essa a intenção do legislador, ele teria, no mínimo, se valido de artigos autônomos e específicos, até em respeito às diretrizes da LC 95/98.
Terceiro — Separação das obrigações da Pessoa Jurídica e de seus sócios
Como regra geral, o patrimônio e a responsabilidade da pessoa jurídica não se comunicam com a dos seus sócios, salvo nas situações especiais previstas em lei.
O Código Civil, por sua vez (ainda que estatuto de lei ordinária), disciplina a responsabilidade dos sócios, nos diversos tipos de sociedades, indicando em que situação o sócio responde solidariamente, ou não. Nesse sentido:
a) o artigo 1.023, prevendo a responsabilidade apenas subsidiária (e não solidária) dos sócios, no caso da sociedade simples;
b) o artigo 1.045, prevendo a limitação da responsabilidade dos sócios comanditários ao valor de suas quotas, no caso de sociedade em comandita simples; e
c) o artigo 1.052, prevendo a limitação da responsabilidade dos sócios ao valor de suas quotas, no caso de sociedade limitada.
Desta forma, se admitida a aplicação do dispositivo sob análise de forma ampla, então essa separação de patrimônio e de responsabilidade (conforme dispositivos acima indicados) ficaria prejudicada, ainda que parcialmente. Não se mostra razoável entender que o mencionado parágrafo 4º tivesse alcance tão abrangente, a ponto de provocar modificações substanciais no Direito de Empresa, previsto no Livro II da Parte Especial do nosso Código Civil.
Invoca-se aqui, em abono ao nosso entendimento, a disposição contida no artigo 110 do CTN, vedando à lei tributária a alteração, a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos e formas do direito privado.
Mais uma vez, portanto, não nos parece ser a interpretação mais adequada, aquela que atribui ao parágrafo 4º do artigo 78 da LC 123/06, a sua aplicação ampla aos sócios de qualquer sociedade.
Quarto — Tratamento mais rigoroso para os Sócios da ME ou EPP
Resta, por último, enfrentar o principal argumento de suporte à interpretação que atribui aplicação ampla da norma legal sob análise.
Para essa linha de entendimento, não haveria justificativa para que a responsabilidade tributária dos sócios de uma ME ou EPP fosse mais gravosa do que aquela atribuída aos sócios de outras sociedades, já que justamente são as ME e as EPP que gozam de um tratamento diferenciado e favorecido.
Esse argumento pode nos induzir a admitir, inadvertidamente, que tal responsabilidade aplica-se também aos sócios das demais sociedades, e não apenas aqueles de uma ME ou EPP.
Porém, fazendo-se uma análise mais abrangente e sistêmica da lei, parece-nos que essa não seria a melhor interpretação a ser extraída desse dispositivo legal. Pensamos que para se encontrar a melhor interpretação dessa norma é necessário que ela não seja analisada de forma isolada, mas sim como ela está inserida no contexto da lei.
Dentro dessa forma de interpretar, vemos que existe razão lógica e coerente do legislador em atribuir, especificamente aos sócios da ME e da EPP, tal tratamento solidário, e não aos demais, pelos motivos abaixo.
Inicialmente cabe destacar que o tratamento diferenciado e favorecido previsto na lei está dirigido à ME ou à EPP (empresa/pessoa jurídica), enquanto que os sócios estão num segundo plano. O que a lei objetiva é facilitar e favorecer a vida da ME e da EPP, não propriamente a dos seus sócios. Logo, não vislumbramos nada de estranho ou incoerente em que os sócios de uma ME ou EPP não recebam o mesmo tratamento diferenciado e favorecido dado às sociedades da qual sejam sócios.
Além disso, a lei estipulou à ME ou EPP uma série de vantagens, que vão desde uma redução da carga tributária, vantagens creditícias, exoneração e diminuição de obrigações acessórias, vantagens em licitações públicas, entre outras. Então, nada mais natural que, sob o aspecto tributário, o legislador atribuir responsabilidade solidária aos seus sócios pelo não pagamento de tributos, pois estes foram justamente reduzidos, mas, em troca, os sócios assumem a solidariedade tributária.
Também vem em reforço à nossa tese, o resultado da interpretação conjunta do “caput” do artigo 9º e do § 3º do artigo 78 dessa lei. Esses dois dispositivos estabelecem, em resumo, a responsabilidade tributária dos sócios, no caso de baixa da ME ou EPP. Já o § 4º em questão, por sua vez, veio prever que essa responsabilidade também se aplica durante a atuação da ME ou EPP, não apenas para o caso de baixa. A própria palavra também contida na parte inicial desse § 4º, nos leva à leitura de que, além da responsabilidade dos sócios no caso de baixa, ela (a responsabilidade) também se aplica durante ao próprio período de atividade da ME ou da EPP.
Também é importante destacar que o início da redação do § 4º em apreço, utiliza-se a expressão “titulares ou sócios”, não indicando de que tipo de sociedade ele está se referindo. Porém, como se trata de um parágrafo, temos que fazer essa leitura com os “olhos” no comando do artigo. Ora, o comando do artigo (caput) está se referindo expressamente às ME e às EPP e a nenhuma outra sociedade!
Por último, convém salientar que o enquadramento como ME ou EPP é de natureza opcional. Logo, se for efetuada a opção pelo enquadramento nesse regime, como forma de usufruir dos favores da lei, o ônus é conseqüente do exercício dessa opção, ou seja, a responsabilidade tributária dos sócios só pode ser atribuída aos que exerceram tal opção, e a mais ninguém.
Entendemos, então, que os “titulares ou sócios” mencionados no § 4º só podem estar associados à uma ME ou uma EPP, que são as sociedades de que trata o “caput” do artigo 78.
Devemos reconhecer, porém, que esses dispositivos poderiam ter sido redigidos de forma mais precisa. Mesmo assim, entretanto, entendemos que a interpretação mais adequada aos mesmos é no sentido restritivo.
A responsabilidade tributária dos sócios nas sociedades não enquadradas como ME ou EPP.
O que se defendeu acima não significa dizer, em hipótese alguma, que nas sociedades não enquadradas como ME ou EPP, os sócios não podem ser chamados à responsabilidade tributária.
O que estamos defendendo, é que o parágrafo 4º do artigo 78 da LC 123/06 serve de fundamento para atribuir a responsabilidade tributária solidária apenas aos sócios de uma ME ou EPP.
Tratando-se de sociedades não enquadradas como ME ou EPP, a responsabilidade tributária dos sócios somente pode ser atribuída nos casos previstos no Código Tributário Nacional e na legislação específica.
Considerações finais
É certo que o assunto é polêmico e ainda demandará muita atenção da doutrina especializada. Porém, diante do exposto, entendemos que a aplicação do parágrafo 4º do artigo 78 da Lei Complementar 123/06, que instituiu tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte, deve ser restrita aos sócios destas. Nas demais sociedades, a responsabilidade tributária dos sócios depende de estarem presentes os casos enumerados no Código Tributário Nacional e na legislação específica.
Cabe destacar que não foi objeto de análise, no presente trabalho, a discussão que pode decorrer da aplicação do disposto no § 4º do art. 78 da LC 123/06, em comparação com a nova lei de falências, no que toca à ordem de classificação dos créditos, o que será objeto de estudo em artigo específico.
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[1] Entendemos que a responsabilidade solidária a que se refere o artigo 134 do CTN, é de aplicação entre as pessoas mencionadas nos seus incisos. Porém, a responsabilidade dessas pessoas, em relação à sociedade, é subsidiária.