Gazeta Mercantil / Leda Rosa
08/12/2008
Pascal Lamy, diretor geral da Organização Mundial de Comércio (OMC) deixa claros dois pontos essenciais no contexto da crise mundial. Primeiro, somente um acordo na Rodada Doha, de negociações para a liberalização do comércio global, garante a estabilidade e abertura das relações comerciais entre as nações. Segundo: Doha, por ser a única instância na qual se negocia multilateralmente, é essencial para a economia brasileira, porque só por meio dela é possível assegurar tetos para os subsídios dos países ricos às suas agriculturas.
Hoje, mesmo com toda a competitividade do setor agrícola nacional, os produtos das nações desenvolvidas ganham a concorrência por causa dos baixos preços. Em entrevista exclusiva à Gazeta Mercantil e ao Jornal do Brasil, Lamy diz que não trabalha com prazos limites, mas os analistas esperam que ele decida, até amanhã se convoca ou não, uma reunião ministerial de Doha para sábado, dia 13, em Genebra, Suíça.
Apesar do clima de pessimismo que predomina entre os negociadores e analistas - fermentado pela falta de alinhamento entre os países ricos e os emergentes nas reuniões bilaterais que aconteceram durante a semana -, o anúncio do novo encontro sinalizaria que ainda há chances para um entendimento, mesmo que básico, para a regulação do comércio entre os 153 países integrantes.
Gazeta Mercantil - O apelo do G20 em Washington pela conclusão da Rodada Doha se refletiu em maior flexibilidade dos negociadores nos encontros que o senhor tem mantido nas últimas semanas?
Os líderes do G20 afirmaram que querem um acordo sobre agricultura e bens industriais antes do fim do ano. Os líderes do Fórum de Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (Apec) também colocaram a rodada em evidência na reunião em Lima, Peru. Essa vontade política é uma condição necessária para chegar a um acordo. E um resultado claro foi o aumento da intensidade das negociações aqui em Genebra. Outro elemento necessário são movimentos por parte dos negociadores. Meu trabalho agora, junto com os mediadores, é exatamente avaliar o que há de movimento novo para concluir essa parte da negociação.
Gazeta Mercantil - Em quais pontos, dos quatro apontados como chaves pelo senhor (salvaguardas especiais, produtos sensíveis, acordos setoriais e erosão de preferências) têm acontecido os avanços mais importantes nestas conversas prévias?
É um trabalho em curso, não é possível neste momento apontar uma área com mais ou menos progresso do que outra. Esses quatro pontos são importantes, mas não são os únicos onde os avanços serão necessários para chegarmos a um acordo.
Gazeta Mercantil - Especificamente o que está avançando na questão das salvaguardas - que, segundo boa parte dos analistas, polarizou o último encontro em julho e dividiu os países em dois blocos, com Índia e China de um lado e o restante dos participantes de outro?
De julho para cá, os dois lados dessa questão conversaram muito. Houve muito trabalho técnico aqui em Genebra e isso contribui para encontrar uma solução para o impasse. O que ficou claro da reunião em julho é que esse tema é crucial para um certo número de países, e que será necessário encontrar uma solução para concluir as "modalidades" (acordo preliminar em agricultura e bens industriais).
Gazeta Mercantil - A julgar pelo andamento das reuniões com os negociadores seniores dos países, o senhor acredita que será possível a reunião de Doha acontecer em dezembro?
Ainda não tenho a resposta para esta questão. Os líderes do G20 instruíram os ministros de comércio a concluir um acordo em dezembro. Essa instrução precisa se traduzir em movimento na mesa de negociação. Em algum momento, ficará claro se vale a pena reunir os ministros para concluir as questões mais difíceis.
Gazeta Mercantil - O prazo para definir se haverá a reunião em dezembro é nesta segunda, dia 8?
Não trabalho com um prazo limite. Claramente o calendário é apertado. É uma decisão que precisa ser tomada em conjunto com os ministros, e logo.
Gazeta Mercantil - Quais as três maiores dificuldades que o senhor está enfrentando nestas reuniões prévias?
Temos quatro temas sobre a mesa, e são temas difíceis. Outros temas, também importantes, precisam de atenção. A base do nosso trabalho é o que chamamos em inglês de "single undertaking": tudo precisa ser decidido ao mesmo tempo para fechar um acordo. Em poucas palavras, é tudo ou nada. Se concluirmos os temas principais e algum outro ponto provocar impasse, o acordo não avança. Além disso, as decisões são tomadas por consenso: todos os participantes têm de aceitar o texto final. Isso leva tempo.
Gazeta Mercantil - Sem Doha, perde o comércio mundial. Mas o senhor considera que o Brasil está entre os que podem se considerar mais prejudicados? Por quê?
Um exemplo claro é a questão dos subsídios: o Brasil é competitivo em setores que ainda são protegidos nos mercados ricos por subsídios e tarifas altas, como produtos agrícolas. A questão dos subsídios que distorcem o comércio é um dos temas que só podem ser resolvidos num ambiente multilateral, na OMC. Sem um acordo de Doha, Estados Unidos, Europa e Japão têm um espaço enorme para aumentar a ajuda aos agricultores e prejudicar as exportações brasileiras. Um acordo limitaria esse espaço de maneira inédita. A energia que o presidente Lula e o governo brasileiro colocam nas negociações de Doha mostra a importância que esse tema tem para a economia do país.
Gazeta Mercantil - Quais seriam os outros países fortemente impactados sem Doha e por que?
Os países mais pobres podem ser os mais afetados caso não haja um acordo global. Em parte, pelas mesmas razões que se aplicam ao Brasil: os produtos exportados por esses países são os que ainda encontram barreiras elevadas em mercados importantes. Mas um risco mais amplo afetaria todos em certo grau: a possibilidade de um retorno ao protecionismo. Um acordo de Doha seria um seguro contra novas barreiras comerciais e um sinal de que o mundo pode tomar decisões coordenadas em um momento de crise global.
Gazeta Mercantil - As novas medidas protecionistas estão se espalhando pelos países, inclusive pelo Brasil, impulsionadas pela crise internacional (sempre é preciso achar um culpado e o estrangeiro é a vítima preferida nestes cenários). Nas mesas de negociações pré-Doha, que o senhor comanda agora, este espírito protecionista está mais forte?
Vejo esta questão por outro ângulo: os países querem evitar uma espiral de barreiras comerciais. A mensagem no comunicado do G20 é clara: é necessário deixar o comércio aberto neste momento de crise.
Gazeta Mercantil - A falta de uma posição comum no âmbito do Mercosul continua. Isso prejudicou a rodada em julho? E pode prejudicar novamente se houver uma reunião ministerial em dezembro?
Essa é uma decisão interna do Mercosul. Vejo que o grupo tem uma tarifa externa comum mas não tem uma política comercial única, como é o caso da União Européia. Aqui, cada participante do Mercosul é um membro da OMC e tem seus próprios negociadores.
Gazeta Mercantil - Quais são as suas expectativas sobre o novo congresso americano, majoritariamente democrata, e sobre os rumos da política comercial de Barack Obama, o futuro presidente dos Estados Unidos?
A política comercial americana tem um histórico bipartidário. Todas as decisões sobre comércio exterior, como a aprovação do Nafta e dos últimos tratados de comércio bilaterais, recebem apoio mais ou menos equilibrado de democratas e republicados. Não vejo sinais de que esse equilíbrio vá mudar. Também acredito que a troca de comando na Casa Branca terá pouco impacto sobre o rumo da política comercial. Nos EUA, comércio é uma questão de competência do Congresso.
Gazeta Mercantil - Como o senhor avalia o fortalecimento do G20 como fórum que lidera as discussões sobre a nova arquitetura financeira mundial?
Essa expansão é bem-vinda. É um sinal claro de que a geopolítica mudou. Sete ou oito líderes de países ricos não podem mais tomar decisões em nome do mundo. Esse fórum expandido, com países desenvolvidos e em desenvolvimento, reflete de maneira mais precisa a importância das economias emergentes no cenário global. A China, o Brasil, a África do Sul, a Índia e outros devem necessariamente estar à mesa de discussões. Da mesma forma, também terão uma parcela maior de responsabilidade sobre a governança global. Isso já acontece na OMC há alguns anos, e com certeza vai se repetir nas discussões de outros temas globais.
Gazeta Mercantil - Quando começa seu novo mandato e quais as três prioridades mais relevantes deste seu novo período frente da OMC?
Meu mandato atual termina em agosto de 2009. Pelas regras da OMC, eu tinha até o final de novembro para anunciar se me candidataria a um segundo mandato ou não, e fiz isso no começo do mês. Eu acredito que posso ajudar a continuar a fortalecer a instituição e o sistema multilateral de comércio. Concluir a rodada de Doha continua a ser a prioridade. Mas a decisão é dos membros da OMC. O processo de seleção começa em dezembro, com um mês de prazo para que outros candidatos se apresentem. O nosso sistema de escolha do diretor geral está entre os mais transparentes entre as organizações internacionais.
Gazeta Mercantil - Se houver uma reunião ministerial de Doha dezembro e, um acordo na reunião ministerial, quais serão os próximos passos e prazos para a rodada?
É prematuro falar em prazos, e eu não costumo responder a perguntas que começam com "se"! Mas os próximos passos são claros: o acordo que buscamos agora determinará como serão feitos os cortes de tarifas e de limites de subsídios. Quando esse trabalho estiver pronto, o passo seguinte é traduzir esse acordo em novas tarifas, novos limites. Os outros capítulos da negociação, como serviços, regras, e comércio e meio-ambiente, terão de avançar. As modalidades são simplesmente o próximo passo para a conclusão da rodada.
Gazeta Mercantil - Por que Doha era tão importante em julho e, mesmo em meio à crise financeira, continua sendo?
A crise financeira aumenta a importância e a urgência de um acordo. Volto a citar o G20: os líderes querem manter os mercados abertos e evitar novas barreiras comerciais. Um acordo de Doha tem o potencial de reduzir o espaço para novas barreiras e de esclarecer as regras que os membros da OMC aplicam entre si. Isso cria maior estabilidade, que é essencial para as decisões de investimento numa economia global. É importante também lembrar que a crise financeira já produziu um impacto no comércio, e um exemplo é a dificuldade de encontrar financiamento de curto prazo a importadores e exportadores. O Brasil sentiu esse impacto, e o BNDES teve que aumentar o financiamento para o comércio exterior. Doha não tem respostas para a crise financeira, mas seria um ato importante para fortalecer a confiança global num momento de incerteza. A estabilidade nas relações comerciais sempre foi uma das principais contribuições da OMC para a economia mundial.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
"Mobilização para fechar Doha é positiva", afirma Lamy em entrevista
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