segunda-feira, 30 de junho de 2008

Em crise, Argentina se isola e retoma protecionismo

Guinada protecionista pode afetar fluxo comercial anual de mais de US$ 25 bilhões com Brasil
O Estado de Sâo Paulo / Denise Chrispim Marin / ARIEL PALACIOS
30/06/2008
Nos sete meses de governo Cristina Kirchner, a Argentina ameaça recair em um imbróglio tão sério como o que levou Fernando de la Rúa, em dezembro de 2001, a renunciar à presidência e escapar da Casa Rosada num helicóptero. A presidente rejeitou as saídas ortodoxas para o controle da inflação, alimentou a insegurança no setor privado e nos contribuintes e optou pelo protecionismo.Embora o Brasil faça de tudo para não trombar com seu sócio estratégico, um embate já começou na mesa de negociação da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio. Na semana passada, os negociadores argentinos refutaram a posição defendida pelo Brasil sobre a abertura do mercado industrial do Mercosul. Analistas argentinos e brasileiros acreditam que essa guinada protecionista possa, novamente, afetar o fluxo de mais de US$ 25 bilhões ao ano do comércio bilateral.Os mais de cem dias de conflito entre o governo e os produtores agropecuários, por conta do imposto sobre as exportações do setor, reduziram o ritmo de crescimento do país. O consumo despencou, os investimentos entraram em compasso de espera, uma nova crise energética despontou no cenário de curto prazo e o governo começou a perder aliados políticos.“A crise argentina é política, não econômica. A causa é um governo que não negocia com ninguém e trombrou com um setor que não se submeteu a suas decisões e se aliou à descontente classe média”, afirmou o consultor Pedro da Motta Veiga. “O governo politizou todas as soluções de política econômica e está amarrado ao mastro de um barco que afunda.”Para Motta Veiga, o bom senso seria suficiente para aplacar a crise, que tanto desorganiza a economia do país como unifica e dá personalidade política ao setor rural. “Bastaria chamar dois ou três economistas de linha ortodoxa”, resumiu. Mas Cristina não parece disposta a aceitar essa receita e, ao contrário do que aconteceu no passado, alimenta uma crise que não teve causas externas. “A Argentina parece ter uma vocação para se deixar envolver em crises. Mas, desta vez, a crise é ‘home made’”, avaliou José Botafogo Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e ex-embaixador em Buenos Aires.Por enquanto, Botafogo não aposta em “hostilidades” da Argentina contra os produtos brasileiros. Se surgirem, explica, serão imediatamente abafadas pela Comissão de Monitoramento do Comércio Bilateral, criada para diluir problemas entre os dois países. Mas analistas argentinos ouvidos pelo Estado são menos otimistas. “Não é nada assegurado, mas esse risco existe”, afirmou o ex-secretário de Comércio Exterior Raúl Ochoa.Conforme explicou, a perda de competitividade (por causa do aumento da inflação) e de rentabilidade das empresas tende a motivar a procura de bodes expiatórios. Esse panorama deve se complicar no ambiente de eleições parlamentares do ano que vem. Em 2004, quando a Argentina tentava se recuperar da crise de 2001-2002, o então presidente Néstor Kirchner anunciou medidas protecionistas contra produtos brasileiros. Seu governo apostava na recuperação da indústria - que, além de sucateada, enfrentava a concorrência dos setores brasileiros de calçados e eletrodomésticos. Essa “invasão” foi usada como bode expiatório dos problemas internos argentinos.Para o ex-secretário de Indústria Dante Sica, a Argentina se isola cada vez mais. A paralisação das exportações agropecuárias por mais de três meses provocou vantagens para o Brasil, que é “um fornecedor muito mais confiável para o resto do mundo e pode conquistar os mercados que a Argentina está perdendo”. Sica assinala ainda que, assim como os grandes investidores preferem o Brasil à Argentina, só o Brasil se candidatou a investir na Argentina nos últimos anos.Desde 2002, as empresas brasileiras instaladas na Argentina investiram mais de US$ 10 bilhões. Hoje, o capital brasileiro no país equivale a 25% dos investimentos estrangeiros. Além dessa relativa dependência, a Argentina se tornou refém do Brasil na questão energética. O País se comprometeu a exportar eletricidade para a Argentina neste inverno, como forma de cobrir a incapacidade de a Bolívia fornecer gás natural para suas termoelétricas. Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ordenou a aceleração do cronograma para o início das obras da hidrelétrica binacional de Garabi, no Rio Uruguai. A expectativa do Itamaraty é que essas iniciativas pelo menos contenham o impulso protecionista da Argentina contra o Brasil.

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